O baile civilizatório e o indivíduo barrado na entrada da porta



Por Gilvaldo Quinzeiro


1 – A civilização rejeita aquilo que é mais íntimo no indivíduo em nome do bem-estar de todos. E o que entendemos pelo mais íntimo no indivíduo? São seus desejos, odores, excrementos, agressividades, sonhos, etc. É como se recebêssemos um convite para uma ceia, com a orientação de que deixássemos a boca logo na entrada da porta. Ora, um convite desse no qual o indivíduo é obrigado a deixar de lado a sua voracidade, não pode ter efeito sem que se ofereça algo maior e melhor entronca – será? É aqui onde todos viram peixes em um lago farto de isca – motivo pelo qual vivemos todos enfartados?  Pobre indivíduo ou pobre civilização?


2 – Sigmund Freud chamaria o dito acima de “O Mal-Estar na Civilização”. Algo assim se passa numa antiga fábula contada pelos nativos da região dos cocais maranhenses que, segunda a qual, uma certa vez, todos os cães de uma localidade foram convidados para um baile, porém, em sinal de respeito ao dono da festa e de seus convidados, nenhum cão poderia entrar no salão da festa com os anus. De modo que, de acordo com as normas e as etiquetas do baile, este seria deixado num canto próximo à entrada da porta principal. O problema dessa medida é que os organizadores não previram quem em festa de cão, sempre acontece convulsão. E para lá das tantas horas da noite, ocorreu uma violenta briga, e a porta de saída, que era a mesma de entrada, se tornou estreita demais para a cachorrada querendo sair. Agora imagine como cada cão conseguiu identificar e pegar de volta aquilo que deixara do lado de fora da porta!...   


3 – O controle dos esfíncteres é, portanto, o que marca a inserção do indivíduo na civilização. Daqui para frente tudo que diz respeito à intimidade do indivíduo, incluindo os seus odores e excrementos têm que tomar outro destino, qual seja, o de, mesmo sendo inerente ao indivíduo têm que se “separar” deste para o bem da coletividade.


4 – Em outras palavras, o baile civilizatório só aceita indivíduos “castrados “conquanto falsamente vestidos e investidos de papéis, que na prática cumprem a mesma função que as porcas e os parafusos nas engrenagens de uma grande máquina – a máquina de triturar as individualidades e as suas potencialidades.


5 - Pois bem, este é o dilema de toda civilização, seja esta qual for, principalmente em tempo de crise, onde os sonhos e as suas promessas de bem-estar não foram cumpridos! E é claro que cada civilização encontrou um jeito de criar eventos coletivos para permitir que seus indivíduos encontrassem -se com a sua individualidade primitiva. Por exemplo, na Grécia Antiga, os festivais dionisíacos; em Roma os bacanais ou a política do pão e circo; e, nos tempos de hoje, os carnavais conquanto, estes vêm perdendo a sua capacidade de funcionar como válvula de escape devido atender apenas os famintos interesses comerciais, diga-se de passagem, da indústria carnavalesca, enquanto que o indivíduo com suas demandas mais íntimas e primitivas, mais é uma vez é deixado às margens - eis   o perigo não!


6 – Em época de fim de ano, como agora onde as propagandas seduzem o indivíduo a sair de casa para, por exemplo, passar o réveillon na orla de Copacabana ou em outra praia famosa do vasto litoral brasileiro, porém, não sabe o indivíduo que em tais eventos será praticamente esmagada por uma multidão; uma multidão, que servirá apenas de número numa foto a ser estampada no anúncio das festividades do próximo ano!


7 – E assim as demandas do sujeito, demandas que somente o próprio sujeito pode atender, se transformam em sintomas ou adoecimento. Sintomas ou adoecimentos, que têm um destino certo, qual seja, o lucro da indústria farmacêutica.


8 - Sim, eu estou falando das nossas feridas; dos nossos vazios e dos nossos desejos. Ou seja, nenhum clube; nenhuma rede hoteleira; nenhum baile poderá atender...


9 – E retomando a uma expressão popular, que diz que quando um indivíduo está colocando o dedo no nariz, alguém lhe pergunta “se está limpando o salão para a festa”? O que isso tem a ver com nosso tema? Que neste final de ano possamos de fato limpar as nossas feridas, sejam elas físicas ou na alma.


10 – Por fim, que façamos um baile onde possamos estar inteiros e que tenhamos coragem para sermos a nossa companhia!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A roda grande passando pela pequena

Para um aperto de mão: Para onde foi o mundo? Onde estão todos?

Cabeça: a minha não!