Pensando acerca da alma cabocla




Por Gilvaldo Quinzeiro



Parafraseando um velho ditado caboclo. “Deus dá a farinha, mas a cuia, temos que tomá-la das mãos do diabo, pois, este insiste em tirá-la de nós”.  Ora, vamos agora teorizar sobre esta frase. Pois bem, a cuia é feita da cabaça. A cabaça, no imaginário caboclo, contém uma ‘inscrição’ feita pelas mãos puramentemente humanas, a boca. Logo, esta, a boca da cabaça, é prenhe de imperfeições – é aqui que o diabo aparece! Diz-se que a boca da cabaça é a única obra não feita por Deus! Pensar sobre isso é ir além. É ‘pesca’ a alma cabocla.

O dito acima não deixa nada a desejar ao mundo grego, em especial, ao trágico, ao humano, e de modo especial, ao sofrimento de Prometeu por ter dado fogo aos homens.

Mas voltando a farinha. Como imaginar que a mandioca, a matéria-prima da farinha, que é potencialmente um veneno, possa ser transformada em alimento? Eis aqui a mesma arte, que transformou a água em vinho? Como não se referir a ‘alquimia cabocla’? As curas e outras que tais?
Que planta é essa a mandioca? Dela se faz tudo: o beiju; o grolado, a farinha branca, a farinha de puba; o bolo de diversos feitios. Não é sem motivo, portanto, que a farinhada é um labor festivo e coletivo. Momento de reunir toda a família e a vizinhança.

O exposto aqui exige-nos que falemos também da importância das mãos na cultura cabocla. As mãos das parteiras. As mãos das rezadeiras. As mãos das quebradeiras de coco. As mãos das raspadeiras de mandioca.  As mãos, que tecem habilmente os remendos das roupas. Enfim, as mãos!

O caboclo dá uma atenção especial às mãos. Pois, estas, às vezes, são também as únicas ferramentas. Por isso, todo cuidado é pouco quando se faz uso das mesmas. Conta-se que uma vez, um velho carpinteiro, ‘caripina’, no linguajar caboclo, estava com sua enxó lapidando uma madeira. Eis que o diabo lhe apareceu dizendo: “cuidado, assim tu vais arrancar o nariz”! No que o carpinteiro lhe respondeu prontamente fazendo um gesto de levar a enxó em direção a nariz. – Não, só arrancaria se eu fizesse assim! E lá teve o seu nariz arrancado.

Moral da história. Quantas ferramentas poderíamos extrair se bebêssemos nas fontes da nossa cultura! Principalmente em se tratando do grave momento de crise das nossas referências.

Um bom domingo a todos!



                                                      

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