Uma contribuição reflexiva aos “pescadores” de alma
Uma contribuição reflexiva aos “pescadores” de alma
I - A nossa “aranha imagética”. Quando somos prisioneiros
da teia de nós mesmos?
Por Gilvaldo Quinzeiro
O texto abaixo é um esforço para chegar até o limite do
indizível, do inefável, ou seja, lá onde reside a cena primordial do nosso
desespero, do nosso desamparo, das nossas carências mais profundas, e, neste
caso, o próprio autor corre sério risco de, ao fazer este mergulho nestas
profundezas, não conseguir voltar.
O dito acima diz respeito ao que chamaremos de um esboço à
uma introdução ao fantasmagórico, um esforço para um possível ponto de conexão
entre a psicanálise e o xamanismo conforme ventilou o famoso antropólogo
Lévi-Strauss.
Em "A Eficácia Simbólica", artigo publicado em 1949,
Lévi-Strauss analisa um longo e detalhado relato do xamã Kuna, Nele Kantule,
sobre um parto difícil. O xamã, através de um cântico ritualístico, ajuda a
parturiente a dar à luz. Lévi-Strauss argumenta que a eficácia do xamã não
reside em qualquer intervenção fisiológica direta, mas sim na manipulação de
símbolos que dão um significado à experiência da mulher e, consequentemente,
influenciam o processo fisiológico.
Pois bem, se partirmos do ponto de vista de que a
constituição do sujeito é feita a partir do Real, do Simbólico e do Imaginário,
conforme preconiza Lacan, então, aquilo se faz “nó” nos amarradios do sujeito, em
seu esforço de ser, de existir, de sobreviver, “congelando” alguns dos seus
aspectos constitutivos.
Tomemos por exemplo, a uma situação desesperadora, ou seja, no
afã de sobrevivermos, tal como um naufrago em busca de uma boia, o fazemos tendo que “congelar” essa mesma
situação ou cena, num gesto que tende a se permanecer para além desse momento -
, momento este em que fomos abocanhados pelo Real. Esse gesto desesperador, e
que foi “congelado" é, por assim dizer, o “barro “, daquilo que virá a ser
chamado ou não de ego- simbólico ou ego-Imaginário, pois, a depender das
condições que este gesto “congelado” venha apenas orbitar as cercanias, daquilo
que conceitualmente é chamado de ego, sem, contudo, se integrar a este, teremos
então o que ouso chamar de “aranha imagética”. O dito aqui se refere,
principalmente, as condições do nascimento de um bebê, no qual, até este chegar
a ser acolhido pela mãe, o que é comparado as condições desesperadoras vivida
por um naufrago até encontrar as
condições segura de uma praia.
De igual modo, acreditamos que antes de ser amparado pelo colo da mãe, o bebê no seu esforço de
sobrevivência “congela” a cena vivida por si e em si mesmo. É nesta condição que
aludimos ao surgimento da nossa “aranha imagética”.
Será que a “aranha imagética” tal como ora teorizamos é
aquilo que no xamanismo é chamado de “a alma aprisionada”? Estamos nós diante
da cena de parto, da qual, se refere Lévi-Strauss, no seu famoso artigo “a
eficácia do simbólico”? Será este o caso em que também muitas meninas têm
“congelada” a imagem da sua boneca dentro de si?
E se tal cena ou gesto “congelado’ for essa tal da “alma
aprisionada” como então ter acesso a ela? Como trazê-la de volta? Como
evocá-la?
Para tentar responder as questões levantadas acima, supomos
que é a partir desse “gesto congelado” que o sujeito vai interagir uns com os
outros no contexto da linguagem, de sorte que, aquilo que antes nasceu da
condição de caos e desespero, vai aos poucos ganhando contorno e concretude na
cadeia dos significantes, isto é, entra na ordem do simbólico ou não, isto é,
de nós para conosco, bem como para com os outros. Mas, e quando, não obstante o
contexto da linguagem, essa “aranha imagética” permanece lá onde não consegue
fazer parte do ego, ou seja, na condição na qual os xamãs chamariam de “alma
aprisionada” o que fazer? É nestas condições, entretanto, suponhamos, que entram
o tambor, o maracá, os chocalhos, o cachimbo, a vela, bem como outras
ferramentas simbólicas operadas pelas mãos do xamã.
Bem, se o simbólico é aquilo que põe ordem no caos, pode,
este, por exemplo, “acalmar” uma tempestade ou um incêndio? A resposta pode
parecer chocante, mas é sim, ao menos de acordo com os relatos das culturas
passadas.
A propósito, um senhor de 91 anos de idade, disse-me, o
seguinte enquanto, conversamos sentados num banco de uma praça: “numa certa
época, num certo lugar da zona rural do município de Parnarama, Maranhão, os
moradores da comunidade Crimeia, foram tocar “fogo numa roça”, e que no meio
desta roça, havia uma casa abandonada, uma tapera, ocorreu, porém, para o
espanto de todos que tudo foi queimado, exceto a casa. Intrigados, os moradores
foram averiguar o que havia de tão especial naquela casa, e, para a surpresa
deles, encontraram uns símbolos, possivelmente usados pelo antigo morador dessa
casa.”
O dito aqui em alusão
a eficácia dos símbolos se aplica ao bebê, por exemplo, quando este se encontra
numa situação desespero? A resposta é também sim, por incrível que pareça! É
muito comum nos relatos das comunidades rurais mais antigas, se ouvir casos em
que o bebê foi curado de uma cólica intestinal, apenas com o uso do “sarro do
cachimbo” marcado na barriga do bebê com um sinal da cruz.
Podemos dizer que o bebê é aquele ser que está entre o
indizível e a palavra, logo o que será dito sobre ele e sobre o seu sentir
entra não só na composição do seu corpo, como do mundo que o circunda.
Ora, o choro do bebê,
o seu grito mais desesperador diante do indizível, isto é, do Real que lhe
abocanha, se não ganhar um significado qualquer que seja este, e por isso
mesmo, desqualificado, como resposta da mãe a este desespero, então, o bebê não
terá o seu próprio corpo, já que este lhe é despedaçado, mas o caos. E pode
ser, contudo, que o gesto ou a cena a ser “congelado” seja a de fuga, fato este
que nos coloca na condição de um mero filhote de um bicho qualquer. E
nestas condições, o tal bicho fugitivo escapa do alcance das palavras!
Dito de outra forma, a partir do já anunciado, é possível
que tenhamos muitas partes de nós “orbitando” as cercanias do ego, assim como
os planetas em torno do sol. De modo
que, a nossa eterna busca por aquilo que nos falta, talvez, resulte dessa
condição, assim como a nossa permanente sensação de incompletude. Ou seja, há
um pedaço de nós, senão nós inteiro nos olhando como se fosse um estranho a
espera de um “chamado”.
Seria a incorporação nos chamados cultos aos ancestrais tal
como ocorre nas religiões de matriz africana e indígena, essa “visita” da nossa
outra parte de nós, ou seja, daquela parte que está a orbitar a esfera do ego? Eis
o que a continuação da nossa pesquisa tentará responder. Ao menos numa coisa
Lévi-Strauss nos ensina: o xamã pode ser aquele com a capacidade de fazer esse
“chamado”, isto é, fazer o contato com outras esferas, e talvez, com aquele
nosso gesto “congelado” ou aquele pedaço de nós que nos orbita.
Exposto isso, prestemos mais atenção para a face dos adultos
ou qualquer outro lugar do seu corpo, pois, pode ser que ali seja identificado
e registrado este tal gesto “congelado”.
Prestemos atenção em nós mesmos, pois possamos estar diante
de nós mesmos e dos outros numa posição gestual, que, por exemplo, nos impeça de
um abraço, de uma aproximação mais afetuosa. E é talvez seja aqui,
nos lembrando de Nietzsche, que se encontra o nosso “porco espinho”.
Por fim, o dito aqui, nos aproxima de um outro texto,
escrito por mim, mas agora esquecido, “o complexo do galho de árvore”, no qual,
trata da cena de uma criança que, ao escalar uma árvore, e, não
conseguindo mais descer, ficou fixo em
posição de “quatro’ ao contrário, dependurado na própria árvore até a chegada
do socorro, e, que mesmo com ajuda de alguém, permanecia fixo
nessa posição “congelada”, exigindo do
socorrista o dobro do uso da força
para, enfim, descê-lo.
Portanto, a psicanalise e o psicanalista que têm como
ferramenta de trabalho a escuta, precisam ampliar esse processo de escuta das
palavras ditas ou das palavras silenciada, para ouvir “o barro” do qual as
nossas vozes primordiais que estão nele
de algum encravado, tal como as
tatuagens em nosso corpo. É preciso, pois, ouvir também o que nos dizem, por
exemplo, as tatuagens no corpo, bem como o corpo ao ser o lugar em que as
tatuagens estão encravadas. É claro, que, quem quer que esteja disposto a
proceder este tipo de escuta há de se preparar para enfrentar as “tempestades
de assombrações”.
II - Considerações teóricas sobre essa “aranha imagética”
Se estivermos certo a respeito do que especulamos no texto
anterior, isto é, da nossa “aranha imagética”,
deste gesto “congelado”, considerando que isso tudo é apenas maneira dizer a respeito do
indizível, do inefável, é como se
estivéssemos falando do rio, e para falar deste, tivemos que o apanhá-lo com a
própria mão, então, há algo em nós que mesmo fazendo parte de nós, não se
apodrece, ou seja, não sofre a primazia do tempo tal como entendido pela
física? Então essa parte que de nós que se apodrece, o corpo, com esta outra
parte que consegue resistir as marcas do tempo, ou seja a alma, são parte da
totalidade que os mais antigos, incluindo os xamãs, consideram como pares de
opostos, e que assim sendo, podem nos servir quando, por nós evocados? Mesmo eu
sendo uma pessoa cética, sim, é disso que se trata. E é disso que iremos tentar
falar aqui, conquanto, fazendo uso de ilação, ao menos por enquanto.
Vamos tomar por base o caso das aparições em massa dos
objetos voadores não identificados (OVNIs), em Nova Jersey, Estados Unidos, que vem
ocorrendo, salvo engano, desde novembro de 2024, e que até agora não há
uma explicação, conquanto, o governo afirme que esteja fazendo monitoramento –, para tentar explicar a
ocorrência de um “congelamento” de uma cena , de um gesto ou da parte do ego,
ou seja a “a aranha imagética” da seguinte forma:
1 – Não só a população local como a mundial poderão entrar
em pânico;
2 – Diante de um fato “indizível”, “inefável”, uma vez que o mesmo não tem uma explicação,
não obstante se tratar de um país com grandes recursos tecnológicos e
científicos, além, de está em tese, sempre preparado para este tipo de
ocorrência;
3 – E em face do pânico ou do trauma da situação, a psique
individual, assimilará tal objeto, congelando-o, ou seja, tornando os seus
efeitos inócuos para si mesmo, tal como os anticorpos reagiriam no combate aos corpos
invasores; neste caso o objeto, ovnis, faria parte da psique indivíduo, mesmo na
condição de algo estranho; eis, que chegamos, enfim, a descrição do surgimento
da “aranha imagética”.
4 – Ocorre,
entretanto, que essa experiencia das aparições está sendo vivenciada por várias
pessoas, e em tempo de mídias sociais, pela humanidade, então neste caso, esta “aranha
imagética”, para o inconsciente coletivo, terá o mesmo efeito que na psique do indivíduo,
porém, aqui estamos diante de um fenômeno raro, o surgimento de um possível “novo arquétipo”.
Dado como esclarecido, o surgimento da tal “aranha
imagética, sigamos em frente com o nosso propósito de cunho ensaístico. Pois bem, no final do texto anterior, chamamos
atenção para que a psicanalise e o psicanalista possam voltar também a sua
escuta para o que chamamos de “o barro” do qual as nossas vozes primordiais encontram-se
nele encravado, tal como as tatuagens em
nosso corpo. E por que o psicanalista, e não o próprio xamã? Bem, queremos
deixar claro que não estamos substituindo o xamã pelo psicanalista, nem o
diminuído, pelo contrário, estamos louvando-o, e, partindo do legado deste.
Citamos o psicanalista apenas porque este faz da escuta a sua ferramenta de
trabalho, e se assim é, então, não custa nada voltar-se e aprimorar a atenção da sua escuta para
outros pontos.
Feito esse adendo, vamos seguir em nosso esforço no sentido de
‘pescar’ aquela cena, aquele gesto ou aquela imagem “congelada”, de evocá-la,
melhor dizendo, não só para que nela possamos reconhecê-la enquanto parte de
nós, mas sobretudo, pedir socorro ao nosso real apodrecimento. Isso é possível?
Estamos indo no caminho certo? É assim mesmo que devemos proceder diante dos
nossos pares de opostos?
Seja lá o que for,
onde for e como for, o que vamos encontrar nesta busca, entretanto, é preciso
que nos comportemos como estivéssemos falando com um “pedaço de pau”,
recorrendo aqui a um dito popular. Como assim um “pedaço de pau”? O que isso
nos ensina? – Simples. Não é que um pedaço de pau não nos entenda. A questão é
de outra ordem: não devemos esperar
deste a mesma resposta que nós
responderíamos se estivemos no lugar deste, pois em igual medida, somos para este
também um mero “pedaço de pau”. Em outras palavras, quero deixar isso muito
claro que é preciso um outro tipo de escuta.
Neste novo tipo de escuta aquela - que nos capacitaria a ouvirmos
“o barro” do qual as nossas vozes primordiais encontram-se nele encravado, tal como as tatuagens em nosso
corpo – ser-nos-ia possível apenas fazendo
o uso conceitual do entendimento do Real, Simbólico e
Imaginário conforme constam nos ensinamentos de Lacan? Lacan, este mesmo que
fizera com Freud o mesmo que Aristóteles, isto é, dando um passo adiante do seu
mestre, Platão? Então, estamos em condições de ao menos dizer que é preciso dar
um passo a frente de Lacan na ampliação dessa escuta? E se isso é realmente do
que estamos tratando, não seria melhor dizer, nos conformar com a ideia de que,
para estabelecermos a esta nova escuta, temos que admitir que os passos dos
xamãs estão muito à frente de tudo o que já foi dito?
Se estivermos certos naquilo que nos intui, então, podemos
acrescentar um “quarto” ponto ao nó borromeano, a saber, o “Acústico”? E neste
caso, incluir a contribuição de Pitágoras, uma vez que este foi capaz de
“escutar” a música das esferas celestes? Pitágoras, este, o mesmo que via
“número” em tudo, ou melhor dizendo, os pares de opostos?
E por falar nas “esferas celestes” e em Pitágoras, não precisamos ir a Marte, e muito menos das
novas tecnologias, as “IAS”, não estou
afirmando, contudo, que ir a Marte ou as novas tecnologias não sejam
importantes, claro que sim, são importantes, porém, o que nos é mesmo de todo indispensável para que tenhamos uma existência plena e prenha de nós mesmos,
não há outra saída, senão que escutemos o “barro”, no qual estão encravados as
nossas vozes primordiais ou a nossa “aranha imagética”, ou o nosso gesto “congelado”, como aquela
parte que nos orbita, à espera de ser por nós atraída ou evocada -, antes que
esta se “apague’ como aquela última
estrela, que se afasta de nós à velocidade da luz sem
que ao menos captemos o seu recado.
Talvez a crença na morte como a travessia para um outro
lado, assim como os egípcios acreditavam, e que para isso tanto conservavam o
corpo naquilo que chamamos hoje de processo de mumificação, nos indique que ali
no Egito Antigo, se levava a sério a visão de que haja alguma coisa em nós que
possa a nós retornar?
O problema da existência no homem, pelo que nos parece, é mais
complexo, não quero dizer com isso que sejamos melhores do que um isento, mas
apenas e tão somente porque o “lado de fora” que também nos pertence em alguma
medida, ganha mais a nossa atenção do que o nosso “lado de dentro”.
Essa ideia de separar, e não de unir os pares de opostos,
problema pelo qual estamos todos nós hoje em “carne viva”, talvez nos tenha ocorrido
pela primeira vez na difícil experiencia do momento do parto, tanto para a mãe,
e principalmente para o bebê, que vive no próprio corpo, sem que este seja ainda
sentido ou entendido como corpo. E a pergunta que cabe aqui é, quem em nós,
nestas condições, assimilou ou se “doeu’ com a expulsão do útero? A resposta me
intui é: a dor dessa separação, é, em si mesma o pedaço, o gesto ou a própria
“sonoridade anímica”.
Ora, se é verdade que o xamã do qual trata Lévi-Strauss, em
"A Eficácia Simbólica", artigo publicado em 1949, no qual Lévi-Strauss
analisa um longo e detalhado relato do xamã Kuna, Nele Kantule, sobre um parto
difícil, foi capaz de, através de um cântico ritualístico, ajudar a parturiente
a dar à luz, então isso nos indica que aqui tem algo mais a ser escutado. Se para
a parturiente em pleno trabalho de parto, havia uma parte dela que estava
“presa” em outra dimensão de tal modo que esta ausência, era o que dificultava
o parto em si, então que dizer, daquele que estava ainda nas suas entranhas?
Chamar este bebê pelo próprio nome, é, o que vamos chamar do
seu primeiro registro acústico, uma espécie de batismo no mundo anímico. Em
outras palavras, a pronuncia do nome do bebê, no seu momento de parto, é um
gesto tão acolhedor quanto o colo da mãe, com uma diferença, isso tem um efeito
de uma ‘evocação’, um mantra, uma música, para aquela parte do bebê, que, por alguma razão, tenha se “despedaçado”. ou seja, o dito aqui tenta chamar atenção, que
tal procedimento de pronunciar o nome do bebê, no momento do seu nascimento,
teria para este o mesmo efeito terapêutico
que ocorreu com aquela parturiente citada
por Lévi-Strauss.
III - Considerações
possíveis sobre o acústico e a ideia de retorno
O termo acústico será usado aqui no sentido coletivo, e não
no sentido, por exemplo, em que os jovens usam seus fones de ouvidos, ou seja,
para retirarem do mundo. Outro esclarecimento a ser feito, é que o acústico
aqui aludido se refere no sentido de uma “anunciação”, de um “chamado” ou de
evocação bem como no sentido pedagógico ou terapêutico como no caso das
contações de história; das canções de ninar ou dos mantras ritualísticos.
Exposto isto, seja lá o que possa ter ocorrido no passado longínquo
do universo, se uma grande explosão, o big bang, ou outra coisa, entendemos que
um dos fatores presentes suas possíveis origens, é acústico. Ou seja, a propagação do
som como efeito devastador da sua
explosão. Em outras palavras, foi acústico a “mensagem” a respeito do
nascimento do universo.
Se é verdade que tal acontecimento nos primórdios dos tempos,
ocorreu, a despeito dos seus efeitos, danosos inclusive, aos “ouvidos”, qual a razão,
da existência de um sistema auditivo presente em quase todos os seres vivos?
Por que a linguagem verbalizada a despeito de que há outras, incluindo a
corporal, que faz uso, por exemplo, do odor para se comunicar? Por que os
pássaros “cantam”, se no silencio estes estariam em tese mais camuflados da
vista dos seus predadores? Por que o barulho ensurdecedor das cigarras, se com este
toda uma floresta é acordada?
Seja lá como for, o ato pelo qual reagimos a um “chamado”,
se faz com um gesto de “retorno”, quando, por exemplo, nos volvemos em direção ao emissor. De sorte que, se estivéssemos nalgum lugar do
universo em condições de ter “ouvido” o som da explosão do big bang, a
plasticidade deste nosso gesto seria de um “retorno”.
Essa ideia de “retorno” ou de se voltar para a fonte
emissora do acústico, está para o homem, assim como o barulho da isca ao ser
lançada na água, está para o peixe.
Desde os primórdios dos tempos que uma pessoa possuidora do
“dom da escuta” era ascendida a uma posição de respeito no seio da sociedade.
Tirésias, foi um personagem da mitologia grega, cego, e que
ficou famoso pela sua capacidade de auditiva, aponto de ser um dos conselheiros
de Zeus. Diz a lenda que Tirésias era capaz de ouvir os sussurros dos próprios
deuses. A sua capacidade auditiva, se tornou mais aguçada, quando este, ao
ferir duas cobras em acasalamento, foi castigado tendo que viver por sete anos
na condição de uma mulher.
Não podemos, portanto, compreender o imaginário coletivo,
sem nos aprofundarmos na ideia de “acústico”. Em qual
medida não compreendemos este imaginário coletivo, e por conseguinte o próprio
processo civilizatório, sem a compreensão da ideia de “retorno”, como elo agregador
da própria condição que assegura a existência deste imaginário coletivo.
O acústico e o retorno estão tão intimamente associado quanto
a entrada triunfal de um rei, em uma reunião solene, ou seja, a presença deste se
faz antes ser anunciada pelo arauto ao
som das trombetas ou de um “bastão”, quando
deste, se faz uso como um instrumento acústico ao batê-lo ritmicamente no piso
de um salão.
O acústico e o retorno, conquanto em condições adversas,
estão presentes também, na história de Odisseu, famoso personagem da mitologia
grega, conhecido pela sua astúcia. Odisseu, estava curioso para ouvir o canto
das sereias, mas sabia do perigo. Aconselhado pela feiticeira Circe, ele
ordenou que seus marinheiros tapassem os ouvidos com cera para não serem
afetados pelo canto. Ele, porém, pediu para ser amarrado ao mastro do navio,
para poder ouvir o canto sem sucumbir à tentação de se jogar ao mar. Não esqueçamos, porém, que tudo isso, estava acontecendo,
enquanto Penélope aguardava pacientemente pelo “retorno” do seu marido Odisseu!
Alguns místicos acreditam que o retorno de Jesus Cristo será
anunciado por um sinal acústico: o
toque das trombetas. Aliás, muita gente
tem relatado ter ouvido baralhos estranhos vindo dos céus, ultimamente.
Por que será que Jesus Cristo no esforço de ressuscitar
Lázaro, fez uso das palavras, isto é, da emissão do acústico, e não de outro recurso,
por exemplo, uma luz, para quem estava há três dias morto? Onde estava Lázaro e
que parte deste “ouviu” Jesus chamando pelo seu nome?
Pois bem, retornando agora aquela cena de parto, descrita pelo
antropólogo, Lévi-Strauss. O que o xamã usou em auxilio a parturiente em seu
difícil e demorado trabalho parto, quando as outras condições neste intento já
tinham sido esgotadas, senão os recursos acústicos.
O parto é um acontecimento acústico, especialmente para o
bebê. Talvez, antes mesmo de ver, ouvimos. Por isso, são os ouvidos, e não os
olhos que nos abrem a passagem para o mundo! Por exemplo, em algumas
comunidades rurais do Nordeste, o nascimento de um bebê, era anunciado com
disparos de fogos de artifícios (foguetes). Aliás, era também com o disparo de
foguetes que o sexo do bebê, era anunciado, se masculino ou feminino. A maior
quantidade de tiros de foguetes anunciava com que ali tinha nascido um menino. Até
mesmo o nascimento de jesus Cristo, segundo a tradição oral nordestina, por
exemplo, é anunciada não com fogos de artifícios, mas não deixa de ser um
acontecimento acústico - as “vozes” dos animais, sendo o galo o arauto desta
anunciação – rasgando o véu da noite “Jesus Cristo
nasceu”!
A importância do acústico nas tradições culturais, não
termina com o parto. Este bebê precisa ser também alimentado e acolhido com as
chamadas canções de ninar. Acredita-se que as canções de ninar existam desde
que os primeiros humanos começaram a cuidar de seus bebês. Elas são um fenômeno
universal, presente em todas as culturas do mundo. O primeiro registro escrito
de uma canção de ninar data de 2000 a.C., na Babilônia. O timbre da voz
materna, especialmente durante o canto, libera ocitocina (o "hormônio do
amor") tanto na mãe quanto no bebê, fortalecendo o vínculo afetivo e
promovendo relaxamento. Estudos indicam que as canções de ninar podem ajudar a
regular a respiração e os batimentos cardíacos do bebê, além de estimular o
desenvolvimento cerebral e a aquisição da linguagem.
Essa relação da importância do cantar, vai além do seu
efeito emitido pela voz humana. As “vozes” dos animais, ou os sons emitidos por
estes, têm um efeito que vai além do que imaginamos. Por exemplo, convém se
destacar que não se pode compreender o lado místico, poético e cultural de um
amanhecer no sertão, sem levar em conta o cantar do galo. É no “primeiro cantar
do galo” que os viajantes, os amantes em fuga, combinavam para iniciar suas
viagens. As assombrações, as “visagens” só duravam até o galo cantar, enfim,
nada tão esperado pelos sertanejos que o canto do galo nas primeiras horas,
antes mesmo do nascer do sol.
É possível que as pessoas que cresceram ouvindo história ou
cantando as canções da infância, vivam mais e melhor. A sonoridade de uma
gargalhada não faz bem só ao sujeito que gargalha, mas a todos em sua volta.
Portanto, temos algo em nós que é revestido do acústico. De
sorte que da mesma forma que servimos da pele para alguns diagnósticos, devemos
dar a mesma importância para compreendermos
o sujeito como ser construído de sonoridade própria. Com um
detalhe, não só a pele sofre, talvez, a consequência do acústico, mas
fundamentalmente a alma.
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