A SALA DE AULA, UM RELATO DE UM SOBREVIVENTE
Gilvaldo Quinzeiro
Pretendo escrever este breve ensaio a respeito da sala de aula, local onde passo a maior parte da minha vida. Mas objetivo escrever de uma forma poética e prazerosa, divertindo-me com as palavras e realizando assim uma catarse. Ousarei falar a partir da minha própria experiência enquanto educador, poeta e ser humano. Servirei-me para este fim, da contribuição da Psicanálise, da Historia e da Antropologia; todavia, não quero tornar o texto um tratado desta ou daquela ciência, porque quero, sobretudo usufruir a liberdade de um poeta apaixonado. Um simples andarilho, que pega carona de trem e segue sua viagem rumo ao desconhecido, que é o dia-a-dia da sala de aula...
Quando externei meu pensamento de escrever a respeito da sala de aula, um amigo meu, também professor, sorriu me perguntando: “mas do quê mesmo você vai falar?” Ao que prontamente respondi: “Vou falar sobre a sala aula de um modo que ninguém jamais ousou escrever. Estando agora a escrever a respeito desse assunto, já tão exaustivamente comentado por especialistas respeitados e tudo mais, chego à conclusão que meu amigo tinha razão em estranhar a minha decisão, uma vez que já se falou de tudo a respeito da sala de aula. O que teria eu a dizer?”.
Inicio a aula de História pedindo aos meus alunos da 5ª série que se imaginem dentro de uma caverna (a sala de aula) e que eles (os alunos) são os pesquisadores.
“Observem as paredes da caverna. Veem alguma coisa?” – Pergunto-os. Eles me respondem:
“Sim! Vemos desenhos, frases escritas, nomes de pessoas. Eu os questiono”:
“O que pretendiam nos dizer os autores de tais trabalhos?” Um aluno faz a seguinte observação:
“Olhe lá em cima no caibro tá escrito:” não esqueçam de mim “! Quem será que fez isso? A quem escreveu? Como conseguiu escrever nas alturas? Subiu nas carteiras? Subiram uns em cima dos outros?” Os alunos se olham perplexos diante de tantas perguntas e respostas improváveis. Em seguida eu aponto para o piso da sala, cheio de massa de chiclete. Pergunto-os:
“O que é isso?” Uns respondem:
“Chiclete!”.
Eu os indago:
“Por que os deixaram aqui? Faz parte da decoração? Não tinha lixeira?” E assim se estende à aula...
Pois bem! Se a sala de aula não é “o bicho” como muitos afirmam, certamente é o nosso maior “achado antropológico”, uma vez que nos remete ao nosso mais longínquo passado: a caverna, com suas pinturas rupestres. Um mundo que é regido por leis próprias, e tal como um caleidoscópio, a cada instante nos apresenta uma nova face. O “vir a ser” que se faz devorando e ruminando “fantasmas” reais e vívidos. E por isso mesmo, um desses lugares “perdidos” onde poucos se arriscariam estar. Os que ousam se entranhar neste misterioso lugar ou são logo devorados de cara no primeiro encontro ou para sobreviverem se transformam em “predador” , devorando os seus fantasmas com tanta avidez, que estes passam a ser suas moradas. Mas, enfim, não conseguem retornar ao chamado “mundo normal”. Em outras palavras, os que conseguem sobreviver jamais retornam ao mundo de onde vieram sem ser também um desses fantasmas. Demerval Saviani, por exemplo, saiu de lá falando em “curvatura da vara”; eu mesmo já falei em algo como “teoria do galho de árvore”. Expressões como essas tão adversas à área da educação, quanto difícil de explicá-las, são sínteses de circunstâncias nas quais a racionalidade e conceitos acabados tornam-se simplesmente incompreensíveis. Certamente, os tais termos são de quem no mínimo se perdeu numa imensa floresta. E em tais circunstâncias ocorre a “despalavra”. Essa remete o homem à origem das cavernas.
“Querem mudar de assunto?” Ao que eles prontamente respondem:
“Sim!”
É claro que neste momento, como se diz, não posso “remar contra a maré”, e nem perder a oportunidade de embrenhar-me em outras conversas, que me levem novamente em direção aos alunos, uma vez que, considerando que a sala de aula é “um campo minado”, aprender com estes mesmos alunos onde e como dar as passadas é mais seguro do que querer fazê-los atravessar pântanos sem ponte nenhuma. E assim estamos nós a conversar sobre tudo: religião, sexo, drogas, violência, amor, paixão, arte e até fantasmas. Certo dia, perguntei aos alunos se tinham pesadelos, se ouviam vozes estranhas e coisas do gênero, o que para minha surpresa, a maioria da turma a resposta foi sim. Fiz isso em outras salas e o resultado foi o mesmo: muitos alunos viviam atormentados com um ou outro problema. Coloquei-me à disposição deles para conversar em particular no horário do recreio. Recebi a visita de alguns, e, embora num curto espaço de tempo, ouvi-os atentamente. E com estes pude partilhar das suas dores e aflições. Mas aprendi muito mais do que ensinei.
Uma “boneca”, cuja dona ficou em “casa”, que assistia aula com seus cabelos em tranças! Um “cavalinho”, que atravessava a sala de aula, desapercebido de outros olhares! A “mãe”, que se torna “presente” no “branco” sofrido pela filha em plena apresentação de um trabalho escolar! A menina que ora era um “desenho”, ora era ela mesma!
Tudo isso e muito mais, torna a sala de aula um espaço fantasmagórico, no qual o “aprender” pode significar uma auto-anulação, enquanto “desaprender” constitui-se numa auto-afirmação. Assim sendo, precisamos olhar a sala de aula a partir de outras visões, porque, na prática, muito desses “olhares” têm sido muito mais eficazes em destruir o olhar dos outros, tal como os “olhos de medusa”, resultando em cegueira completa num espaço que clama por luz. Faz-se necessário, pois, uma “Pedagogia para o inferno”. Do contrário, quem ascenderá aos céus?
Quem deseja construir um outro mundo, embrião de uma nova civilização, deve fincar suas ferramentas na sala de aula, uma vez que esta é exatamente o “berço da civilização perdida”. Isso porque, “o que deve vir a ser, poderá também não ser”, a menos que se faça “ um parto” assistido por todos os que querem este outro mundo. Do contrário, viveremos eternamente as “dores e contrações” de um não-parto de um mundo “cifilizado”.
Encontrar-se com esta “civilização perdida”, a sala de aula, é uma das questões chaves para desatar o nó no qual a nossa civilização está amarrada. O Brasil e o mundo não encaminharão devidamente os problemas como o das alterações climáticas, caso a sala de aula e seus problemas não sejam adequadamente enfrentados. Tais problemas são por assim dizer, de uma mesma ordem. Ou seja, a ordem de uma nova civilização. Uma nova civilização capaz de decifrar as pichações dos muros das cidades e evitar o “vampirismo político” ou outras formas de canibalismo.
Sala de aula exige uma espécie de “engenharia” cujas obras possam desconstruir as “pedras”, “buracos” e “abismos” que nos impedem de edificar a partir da escola um mundo melhor para todos.
Pretendo escrever este breve ensaio a respeito da sala de aula, local onde passo a maior parte da minha vida. Mas objetivo escrever de uma forma poética e prazerosa, divertindo-me com as palavras e realizando assim uma catarse. Ousarei falar a partir da minha própria experiência enquanto educador, poeta e ser humano. Servirei-me para este fim, da contribuição da Psicanálise, da Historia e da Antropologia; todavia, não quero tornar o texto um tratado desta ou daquela ciência, porque quero, sobretudo usufruir a liberdade de um poeta apaixonado. Um simples andarilho, que pega carona de trem e segue sua viagem rumo ao desconhecido, que é o dia-a-dia da sala de aula...
Quando externei meu pensamento de escrever a respeito da sala de aula, um amigo meu, também professor, sorriu me perguntando: “mas do quê mesmo você vai falar?” Ao que prontamente respondi: “Vou falar sobre a sala aula de um modo que ninguém jamais ousou escrever. Estando agora a escrever a respeito desse assunto, já tão exaustivamente comentado por especialistas respeitados e tudo mais, chego à conclusão que meu amigo tinha razão em estranhar a minha decisão, uma vez que já se falou de tudo a respeito da sala de aula. O que teria eu a dizer?”.
A AULA
Inicio a aula de História pedindo aos meus alunos da 5ª série que se imaginem dentro de uma caverna (a sala de aula) e que eles (os alunos) são os pesquisadores.
“Observem as paredes da caverna. Veem alguma coisa?” – Pergunto-os. Eles me respondem:
“Sim! Vemos desenhos, frases escritas, nomes de pessoas. Eu os questiono”:
“O que pretendiam nos dizer os autores de tais trabalhos?” Um aluno faz a seguinte observação:
“Olhe lá em cima no caibro tá escrito:” não esqueçam de mim “! Quem será que fez isso? A quem escreveu? Como conseguiu escrever nas alturas? Subiu nas carteiras? Subiram uns em cima dos outros?” Os alunos se olham perplexos diante de tantas perguntas e respostas improváveis. Em seguida eu aponto para o piso da sala, cheio de massa de chiclete. Pergunto-os:
“O que é isso?” Uns respondem:
“Chiclete!”.
Eu os indago:
“Por que os deixaram aqui? Faz parte da decoração? Não tinha lixeira?” E assim se estende à aula...
Pois bem! Se a sala de aula não é “o bicho” como muitos afirmam, certamente é o nosso maior “achado antropológico”, uma vez que nos remete ao nosso mais longínquo passado: a caverna, com suas pinturas rupestres. Um mundo que é regido por leis próprias, e tal como um caleidoscópio, a cada instante nos apresenta uma nova face. O “vir a ser” que se faz devorando e ruminando “fantasmas” reais e vívidos. E por isso mesmo, um desses lugares “perdidos” onde poucos se arriscariam estar. Os que ousam se entranhar neste misterioso lugar ou são logo devorados de cara no primeiro encontro ou para sobreviverem se transformam em “predador” , devorando os seus fantasmas com tanta avidez, que estes passam a ser suas moradas. Mas, enfim, não conseguem retornar ao chamado “mundo normal”. Em outras palavras, os que conseguem sobreviver jamais retornam ao mundo de onde vieram sem ser também um desses fantasmas. Demerval Saviani, por exemplo, saiu de lá falando em “curvatura da vara”; eu mesmo já falei em algo como “teoria do galho de árvore”. Expressões como essas tão adversas à área da educação, quanto difícil de explicá-las, são sínteses de circunstâncias nas quais a racionalidade e conceitos acabados tornam-se simplesmente incompreensíveis. Certamente, os tais termos são de quem no mínimo se perdeu numa imensa floresta. E em tais circunstâncias ocorre a “despalavra”. Essa remete o homem à origem das cavernas.
PAPO TERAPIA
Sempre que percebo que não estou tendo a atenção dos alunos para o conteúdo que no momento estou lecionando, pergunto-os:“Querem mudar de assunto?” Ao que eles prontamente respondem:
“Sim!”
É claro que neste momento, como se diz, não posso “remar contra a maré”, e nem perder a oportunidade de embrenhar-me em outras conversas, que me levem novamente em direção aos alunos, uma vez que, considerando que a sala de aula é “um campo minado”, aprender com estes mesmos alunos onde e como dar as passadas é mais seguro do que querer fazê-los atravessar pântanos sem ponte nenhuma. E assim estamos nós a conversar sobre tudo: religião, sexo, drogas, violência, amor, paixão, arte e até fantasmas. Certo dia, perguntei aos alunos se tinham pesadelos, se ouviam vozes estranhas e coisas do gênero, o que para minha surpresa, a maioria da turma a resposta foi sim. Fiz isso em outras salas e o resultado foi o mesmo: muitos alunos viviam atormentados com um ou outro problema. Coloquei-me à disposição deles para conversar em particular no horário do recreio. Recebi a visita de alguns, e, embora num curto espaço de tempo, ouvi-os atentamente. E com estes pude partilhar das suas dores e aflições. Mas aprendi muito mais do que ensinei.
COLORINDO OS FANTASMAS
Uma “boneca”, cuja dona ficou em “casa”, que assistia aula com seus cabelos em tranças! Um “cavalinho”, que atravessava a sala de aula, desapercebido de outros olhares! A “mãe”, que se torna “presente” no “branco” sofrido pela filha em plena apresentação de um trabalho escolar! A menina que ora era um “desenho”, ora era ela mesma!
Tudo isso e muito mais, torna a sala de aula um espaço fantasmagórico, no qual o “aprender” pode significar uma auto-anulação, enquanto “desaprender” constitui-se numa auto-afirmação. Assim sendo, precisamos olhar a sala de aula a partir de outras visões, porque, na prática, muito desses “olhares” têm sido muito mais eficazes em destruir o olhar dos outros, tal como os “olhos de medusa”, resultando em cegueira completa num espaço que clama por luz. Faz-se necessário, pois, uma “Pedagogia para o inferno”. Do contrário, quem ascenderá aos céus?
A SALA DE AULA, O BERÇO DA CIVILIZAÇÃO PERDIDA
Quem deseja construir um outro mundo, embrião de uma nova civilização, deve fincar suas ferramentas na sala de aula, uma vez que esta é exatamente o “berço da civilização perdida”. Isso porque, “o que deve vir a ser, poderá também não ser”, a menos que se faça “ um parto” assistido por todos os que querem este outro mundo. Do contrário, viveremos eternamente as “dores e contrações” de um não-parto de um mundo “cifilizado”.
Encontrar-se com esta “civilização perdida”, a sala de aula, é uma das questões chaves para desatar o nó no qual a nossa civilização está amarrada. O Brasil e o mundo não encaminharão devidamente os problemas como o das alterações climáticas, caso a sala de aula e seus problemas não sejam adequadamente enfrentados. Tais problemas são por assim dizer, de uma mesma ordem. Ou seja, a ordem de uma nova civilização. Uma nova civilização capaz de decifrar as pichações dos muros das cidades e evitar o “vampirismo político” ou outras formas de canibalismo.
Sala de aula exige uma espécie de “engenharia” cujas obras possam desconstruir as “pedras”, “buracos” e “abismos” que nos impedem de edificar a partir da escola um mundo melhor para todos.
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